Com a crise econômica, surgiu, então, aquilo que se convencionou conhecer como “abertura”, isto é, um processo em que o regime, através de atos do governo, cedia de alguma forma e admitia discutir politicamente e mesmo submeter-se a um julgamento eleitoral. Foi um fato novo, sem a menor dúvida. Num país em que imperava a mais rigorosa censura, começaram a repetir-se manifestações, sob as mais diversas formas. Depois estabeleceram-se normas para a reorganização partidária. Vínhamos, e com um passado pouco lisonjeiro, de um sistema bipartidário em que tanto o partido do governo quanto o partido da oposição tinham sido criados por atos do governo ditatorial.
Alguns foram, por isso mesmo, escalados para fazer oposição,
misturando-se a ouros que desejavam fazê-la a sério. Com a anistia, por outro
lado, em um passe de mágica, abriam-se perspectivas para o retorno à atividade
política, quase 20 anos depois, de personagens que o regime, inicialmente ou
num segundo tempo, havia tornado párias proibidos, em muitos casos, até de
viver no país. Então, surgiu o momento em que as normais baixadas pelo governo
permitiram e até facilitaram a multiplicação de partidos.
Segundo Nelson Werneck Sodré, o propósito era evidente:
“dividir as forças de oposição, mantendo unidas as que estavam comprometidas
com o regime. As regras do jogo estabelecidas foram de tal sorte que surgiram
partidos artificiais, que não definem limites da opinião pública senão de forma
rudimentar e muitas vezes falsas”.
O quadro se tornou confuso, com figuras evidentemente
deslocadas em seus partidos, apregoando aquilo em que não acreditavam,
enquanto outros ficavam enquadrados em organizações com as quais careciam de
afinidade. Essa confusão não foi uma coincidência, não resultou do acaso,
naturalmente. É que as normas foram baixadas dentro do mesmo espírito
ditatorial. Tratava-se, para o regime instalado em 1964 e aperfeiçoado em 1968,
de operar uma retirada estratégica, bem organizada, metódica, de ritmo controlado,
destinada a restaurar condições perdidas e assegurar a continuidade do que se
estabelecera há quase vinte anos, embora com alguns retoques, tornados
inevitáveis pelo desenvolvimento histórico.
A partir de 1974, quando a crise atingiu o Brasil e definiu
o fim da fase em que o "milagre" teve condições de se apresentar como
um feito do regime, tratava-se de operar, como em 1961, um retraimento em
ordem, evitando um agravamento que poderia desembocar numa luta interna de
todo inconveniente. Por outro lado, na medida mesmo em que o modelo era
alastrado a uma área extensa da América Latina, particularmente ao chamado Cone
Sul, e nele estava gerando o seu oposto, isto é, um processo de esclarecimento
da opinião e de mobilização das forças democráticas em luta com o imperialismo,
tratava-se de conduzir as alterações inadiáveis de sorte a salvar o essencial,
assegurando o controle destes países.
Esta faixa do continente, em que os regimes de violência
armada foram instalados e apregoados como soluções salvadoras, pontilhando os
países de tormentos inéditos, como aqueles ligados à tortura
institucionalizada, serviu de amostragem para soluções políticas apontadas como
capazes de operar milagres. Agora, verifica-se a falácia de tais promessas: os
países vitimados e devastados pelas ditaduras militares, no Cone Sul e alhures,
assinalam a verdadeira face do apregoado "milagre", apresentando
taxas inflacionárias de três dígitos jamais ocorridas, enquanto o desemprego se
ampliava e a carestia reduzia as populações a níveis de miserabilidade
historicamente desconhecidos. O imperialismo, em suma, mostrava sua face. A
derrocada anunciava-se catastrófica.
Neste momento, surgiu no Brasil, como medida saneadora, a
"abertura", uma operação meticulosamente articulada. Deveria ser
"lenta, progressiva e metódica", em que se fariam concessões na forma,
conservando-se o conteúdo intacto. É claro que, desencadeado um processo
histórico de teor político e de complexidade natural, o controle fica em jogo,
isto é, o processo adquire autonomia e pode, realmente, suscitar e desencadear
forças até aí contidas. Mas os planos de contenção foram detalhados, frios,
perfeitamente delineados, de forma que o controle do Estado permanecesse sempre
com as forças que haviam instalado a ditadura e haviam estabelecido as regras
do próprio processo, à sua imagem e semelhança.
Assim, não é por acaso que surgiram movimentos sociais,
apesar da repressão. Eles localizam-se no interior dos conflitos, a partir de
onde postulam novos espaços sociais e o direito à vida, geralmente negado pelos
interesses econômicos. Conforme analisa Vinícius Caldeira Brant, no livro “São
Paulo: o povo em movimento”, no bojo desses conflitos, os atos de resistência
constituíram por muito tempo uma sucessão de fatos isolados, cuja repetição se
dava sob forma de reiteração heróica e, por vezes, suicida.
Assim, foi inicialmente,
com as manifestações estudantis de rua, com as poucas greves e manifestações
operárias, com os desafios à censura por parte de jornalistas e artistas, com
os discursos de denúncia ou protesto de alguns parlamentares, com as homilias
ou declarações públicas de clérigos ou membros da hierarquia eclesiástica em
momentos de especial importância. Não houve semana, mesmo nos períodos da mais
dura repressão, em que o regime não fosse alvo de alguma manifestação de
repúdio.
No plano mais geral da sociedade civil, a situação não era
distinta. Embora se verificasse um crescimento da economia, o poder político
estava dividido como na antiga Atenas: de um lado, poucos gozando de todos os
privilégios e, de outro, a sociedade civil marginalizada. Nessa fase, a atuação
do Estado se dava sobretudo no sentido de impedir a acumulação de forças de
oposição dos movimentos sociais. Mas, segundo Brant, a constância da oposição
estava na própria renovação dos gestos de protestos dispersos.
Todos sabiam, e
o governo não deixava que alguém esquecesse, que a cada protesto correspondia
uma represália: cassação de mandato político ou sindical, perda de emprego,
expulsão da escola, intervenção em associações e órgãos de representação,
recrudescimento da censura, prisão, tortura ou assassinato.
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