quarta-feira, 12 de março de 2014

Capítulo 3 - A chamada abertura

A política militar não estava mais dando certo e, em 1979, o processo de abertura começou a aparecer. Por conta dos altos índices de inflação, desemprego e da dívida externa, o governo ditatorial foi obrigado a garantir o retorno de algumas liberdades a favor da democracia. 

Com a crise econômica, surgiu, então, aquilo que se convencionou conhecer como “abertura”, isto é, um processo em que o regime, através de atos do governo, cedia de alguma forma e admitia discutir politicamente e mesmo submeter-se a um julgamento eleitoral. Foi um fato novo, sem a menor dúvida. Num país em que imperava a mais rigorosa censura, começaram a repetir-se manifestações, sob as mais diversas formas. Depois estabeleceram-se normas para a reorganização partidária. Vínhamos, e com um passado pouco lisonjeiro, de um sistema bipartidário em que tanto o partido do governo quanto o partido da oposição tinham sido criados por atos do governo ditatorial.

Alguns foram, por isso mesmo, escalados para fazer oposição, misturando-se a ouros que desejavam fazê-la a sério. Com a anistia, por outro lado, em um passe de mágica, abriam-se perspectivas para o retorno à atividade política, quase 20 anos depois, de personagens que o regime, inicialmente ou num segundo tempo, havia tornado párias proibidos, em muitos casos, até de viver no país. Então, surgiu o momento em que as normais baixadas pelo governo permitiram e até facilitaram a multiplicação de partidos.

Segundo Nelson Werneck Sodré, o propósito era evidente: “dividir as forças de oposição, mantendo unidas as que estavam comprometidas com o regime. As regras do jogo estabelecidas foram de tal sorte que surgiram partidos artificiais, que não definem limites da opinião pública senão de forma rudimentar e muitas vezes falsas”.

O quadro se tornou confuso, com figuras evidentemente deslocadas em seus partidos, apregoando aquilo em que não acre­di­­tavam, enquanto outros ficavam enquadrados em organizações com as quais careciam de afinidade. Essa confusão não foi uma coinci­dência, não resultou do acaso, naturalmente. É que as normas foram baixadas dentro do mesmo espírito ditatorial. Tratava-se, para o regime instalado em 1964 e aperfeiçoado em 1968, de operar uma retirada estratégica, bem organizada, metódica, de ritmo contro­lado, destinada a restaurar condições perdidas e assegurar a conti­nuidade do que se estabelecera há quase vinte anos, embora com alguns retoques, tornados inevitáveis pelo desenvolvimento histórico.

A partir de 1974, quando a crise atingiu o Brasil e definiu o fim da fase em que o "milagre" teve condições de se apresentar como um feito do regime, tratava-se de operar, como em 1961, um retraimento em ordem, evitando um agravamento que poderia desem­bocar numa luta interna de todo inconveniente. Por outro lado, na medida mesmo em que o modelo era alastrado a uma área extensa da América Latina, particularmente ao chamado Cone Sul, e nele estava gerando o seu oposto, isto é, um processo de esclarecimento da opinião e de mobilização das forças democráticas em luta com o imperialismo, tratava-se de conduzir as alterações inadiáveis de sorte a salvar o essencial, assegurando o controle destes países.

Esta faixa do continente, em que os regimes de violência armada foram instalados e apregoados como soluções salvadoras, pontilhando os países de tormentos inéditos, como aqueles ligados à tortura institucionalizada, serviu de amostragem para soluções políticas apontadas como capazes de operar milagres. Agora, verifica-se a falácia de tais promessas: os países vitimados e devastados pelas ditaduras militares, no Cone Sul e alhures, assinalam a verdadeira face do apregoado "milagre", apresentando taxas inflacionárias de três dígitos jamais ocorridas, enquanto o desemprego se ampliava e a carestia reduzia as populações a níveis de miserabilidade historicamente desconhecidos. O imperialismo, em suma, mostrava sua face. A derrocada anunciava-se catastrófica.

Neste momento, surgiu no Brasil, como medida saneadora, a "abertura", uma operação meticulosamente articulada. Deveria ser "lenta, progressiva e metódica", em que se fariam concessões na forma, conservando-se o conteúdo intacto. É claro que, desencadeado um processo histórico de teor político e de complexidade natural, o controle fica em jogo, isto é, o processo adquire autonomia e pode, realmente, suscitar e desencadear forças até aí contidas. Mas os planos de contenção foram detalhados, frios, perfeitamente delineados, de forma que o controle do Estado permanecesse sempre com as forças que haviam instalado a ditadura e haviam estabelecido as regras do próprio processo, à sua imagem e semelhança.

Assim, não é por acaso que surgiram movimentos sociais, apesar da repressão. Eles localizam-se no interior dos conflitos, a partir de onde postulam novos espaços sociais e o direito à vida, geralmente negado pelos interesses econômicos. Conforme analisa Vinícius Caldeira Brant, no livro “São Paulo: o povo em movimento”, no bojo desses conflitos, os atos de resistência constituíram por muito tempo uma sucessão de fatos isolados, cuja repetição se dava sob forma de reiteração heróica e, por vezes, suicida. 

Assim, foi inicial­mente, com as manifestações estu­dantis de rua, com as poucas greves e manifestações operárias, com os desafios à censura por parte de jornalistas e artistas, com os discursos de denúncia ou protesto de alguns parlamentares, com as homilias ou declarações públicas de clérigos ou membros da hierarquia eclesiástica em momentos de especial importância. Não houve semana, mesmo nos períodos da mais dura repressão, em que o regime não fosse alvo de alguma manifestação de repúdio.

No plano mais geral da sociedade civil, a situação não era distinta. Embora se verificasse um crescimento da economia, o poder político estava dividido como na antiga Atenas: de um lado, poucos gozando de todos os privilégios e, de outro, a sociedade civil marginalizada. Nessa fase, a atuação do Estado se dava sobretudo no sentido de impedir a acumulação de forças de oposição dos movimentos sociais. Mas, segundo Brant, a constância da oposição estava na própria renovação dos gestos de protestos dispersos. 

Todos sabiam, e o governo não deixava que alguém esquecesse, que a cada protesto correspondia uma represália: cassação de mandato político ou sindical, perda de emprego, expulsão da escola, intervenção em associações e órgãos de representação, recrudescimento da censura, prisão, tortura ou assassinato.

Consequentemente, no início dos anos 70 apareceram uma série de movimentos sociais de resistência, com características diferen­tes, reivindicando espaço, criando pólos de confronto que, aos poucos, rearticulavam as forças de oposição.

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