Neste ano, quando completamos 50 anos do golpe civil-militar no Brasil, para além das investidas das “viúvas” do regime
militar, precisamos estar muito atentos para não retrocedermos nos espaços
democráticos conquistados. Nossa democracia ainda está na primeira infância e
muito temos para avançar, principalmente nos direitos humanos e na igualdade
social. O trabalho das Comissões da Verdade devem ser respaldados e suas
informações amplamente divulgadas. Acredito que muito ainda será lembrado,
revelado e debatido neste 2014, e isso é fundamental, pois como diz o escritor
Octavio Ianni, “é pela memória que se puxam os fios da história... O que
parecia esquecido e perdido logo se revela presente, vivo, indispensável...”
Com o intuito de relembrar a história, fui buscar nas
palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano uma fonte de inspiração. O livro
“De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso” é uma leitura obrigatória para
entender as contradições de nosso tempo. Por isso, reproduzo um trecho do
livro, onde o escritor fala sobre a amnésia obrigatória imposta pelas ditaduras
militares que tomaram de assalto nossos países. Sabe aqueles textos que tu
gostaria de ter escrito? Pois é, com Eduardo Galeano me sinto sempre assim.
A amnésia obrigatória
Por Eduardo Galeano
A desigualdade perante a lei é o que faz e continua fazendo
a história real, mas a história oficial não é escrita pela memória e sim pelo
esquecimento. Bem o sabemos na América Latina, onde os exterminadores de índios
e os traficantes de escravos têm estátuas nas praças das cidades e onde as ruas
e as avenidas costumam levar nomes dos ladrões de terras e dos cofres públicos.
Como os edifícios do México que desmoronaram no terremoto de
1985, as democracias latino-americanas tiveram seus alicerces roubados. Só a
justiça poderia lhes dar uma sólida base de apoio, para que pudessem
levantar-se e caminhar, mas ao invés de justiça temos uma amnésia obrigatória.
Em regra, os governos civis se limitam a administrar a injustiça, fraudando as
esperanças de mudança, em países onde a democracia política se despedaça
continuamente contra os muros das estruturas econômicas e sociais inimigas da
democracia.
Nos anos 60 e 70, os militares assaltaram o poder. Para
acabar com a corrupção política, roubaram muito mais do que os políticos,
graças às facilidades do poder absoluto e à produtividade de suas jornadas de
trabalho, que todos os dias começavam bem cedinho, ao toque da alvorada. Anos
de sangue, sordidez e medo: para acabar com a violência das guerrilhas locais e
dos fantasmas vermelhos universais, as forças armadas torturaram, violaram e
assassinaram a torto e a direito, numa caçada que castigou qualquer expressão
da aspiração humana de justiça, por mais inofensiva que fosse.
A ditadura uruguaia torturou muito e matou pouco. A
argentina, em contrapartida, praticou o extermínio. Mas apesar de suas
diferenças, as muitas ditaduras latino-americanas desse período trabalharam
unidas e se pareciam entre si, como cortadas pela mesma tesoura. Qual tesoura?
Em meados de 1998, o vice-almirante Eladio Moll, que tinha sido chefe de
inteligência do regime militar uruguaio, revelou que os assessores militares
norte-americanos aconselhavam a eliminação dos subversivos, depois da obtenção
das informações desejadas. O vice-almirante foi preso, por delito de franqueza.
Alguns meses antes, o capitão Alfredo Astiz, um dos
açougueiros da ditadura argentina, foi exonerado por dizer a verdade. Declarou
que a Marinha de Guerra lhe ensinara tudo o que fizera. E num acesso de
pedantismo profissional, disse que ele próprio era “o homem tecnicamente melhor
preparado no país para matar um político ou um jornalista”. Na época, Astiz e
outros militares argentinos estavam sendo intimados e processados em vários
países europeus pelo assassinato de cidadãos espanhóis, italianos, franceses e
suecos, mas do crime contra milhares de argentinos eles tinham sido absolvidos
pelas leis que apagaram tudo para recomeçar do zero.
Também as leis da impunidade parecem cortadas pela mesma
tesoura. As democracias latino-americanas ressuscitaram condenadas ao pagamento
das dívidas e ao esquecimento dos crimes. Foi como se os governos civis
devessem ser gratos aos fardados pelo seu trabalho: o terror militar criara um
clima favorável aos investimentos estrangeiros e limpara o caminho para que se
concluísse impunemente a venda de países, a preço de banana, nos anos
seguintes. Em plena democracia, ultimaram-se a renúncia da soberania nacional,
a traição dos direitos do trabalho e o desmantelamento dos serviços públicos.
Fez-se tudo, ou tudo se desfez, com relativa facilidade. A sociedade que, nos
anos 80, recuperou os direitos civis, estava esvaziada de suas melhores
energias, acostumada a sobreviver na mentira e no medo, e tão doente de
desalento como necessitada do alento de vitalidade criadora que a democracia
prometeu e não pode ou não soube dar.
Os governos eleitos pelo voto popular identificaram a
justiça à vingança e a memória à desordem, e lançaram água benta na testa dos
homens que tinham exercido o terrorismo de estado. Em nome da estabilidade
democrática e da reconciliação nacional, promulgaram-se leis de impunidade que
desterravam a justiça, enterravam o passado e elogiavam a amnésia. Algumas
dessas leis foram mais longe do que seus tenebrosos precedentes mundiais. A lei
argentina da obediência devida foi editada em 1987 – e derrogada uma década
depois, quando já não era necessária. Em seu afã de absolvição, eximiu de
responsabilidade os militares que cumpriam ordens. Como não há militar que não
cumpra ordens, ordens do sargento ou do capitão ou do general ou de deus, a
responsabilidade ia parar no reino dos céus.
(...) A justiça e a memória são luxos exóticos nos países
latino-americanos. Os militares uruguaios que mataram os legisladores Zelmar
Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz caminham tranquilamente pelas ruas que têm os
nomes de suas vítimas. O esquecimento, diz o poder, é o preço da paz, enquanto
nos impõe uma paz fundada na aceitação da injustiça como normalidade cotidiana.
Acostumaram-nos ao desprezo pela vida e à proibição de
lembrar. Os meios de comunicação e os centros de educação não costumam
contribuir muito, digamos, à integração da realidade e sua memória. Cada fato
está divorciado dos demais fatos, divorciado do seu próprio passado e
divorciado do passado dos demais. A cultura de consumo, cultura de
desvinculação, nos adestra à crença de que as coisas ocorrem sem motivo.
Incapaz de reconhecer suas origens, o tempo presente projeta o futuro como sua
própria repetição, o amanhã é outro nome do hoje: a organização desigual do
mundo, que humilha a condição humana, pertence à ordem eterna, e a injustiça é
uma fatalidade que estamos obrigados a aceitar ou aceitar.
A história se repete? Ou só se repete como penitência para
quem é incapaz de escutá-la? Não há história muda. Por mais que a queimem, por
mais que a rasguem, por mais que a mintam, a história humana se nega a calar a
boca. O tempo que foi continua pulsando, vivo, dentro do tempo que é, ainda que
o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de lembrar não figura
entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje mais do que
nunca é necessário reivindica-lo e pô-lo em prática: não para repetir o
passado, mas para evitar que se repita; não para que os vivos sejamos
ventríloquos dos mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não
condenadas ao eco perpétuo da estupidez e da desgraça, Quando está realmente
viva, a memória não contempla a história, mas convida a fazê-la. Mais do que
museus, onde a pobre se entendia, a memória está no ar que respiramos; e ela,
no ar, nos respira.
(...) A impunidade é filha da má memória. Sabiam disso todas
as ditaduras de nossas terras. Na América Latina foram queimadas cordilheiras
de livros, livros culpados por contar a realidade proibida e livros culpados
simplesmente por ser livros, e também montanhas de documentos. Militares,
presidentes, padres: é longa a história das fogueiras, desde que em 1562, em
Maní de Yucatan, frei Diego de Landa lançou às chamas os livros maias,
pretendendo incendiar a memória indígena.
Para citar apenas algumas labaredas, basta lembrar que em
1870, quando os exércitos da Argentina, Brasil e Uruguai arrasaram o Paraguai,
os arquivos históricos do vencido foram reduzidos a cinzas. Vinte anos depois,
o Brasil queimou toda a papelada que testemunhava três séculos e meio de
escravidão negra. Em 1983, os militares argentinos lançaram ao fogo os
documentos da guerra suja contra seus compatriotas; e em 1995, os militares
guatemaltecos fizeram o mesmo.
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