segunda-feira, 24 de março de 2014

Toda memória será castigada?


Neste ano, quando completamos 50 anos do golpe civil-militar no Brasil, para além das investidas das “viúvas” do regime militar, precisamos estar muito atentos para não retrocedermos nos espaços democráticos conquistados. Nossa democracia ainda está na primeira infância e muito temos para avançar, principalmente nos direitos humanos e na igualdade social. O trabalho das Comissões da Verdade devem ser respaldados e suas informações amplamente divulgadas. Acredito que muito ainda será lembrado, revelado e debatido neste 2014, e isso é fundamental, pois como diz o escritor Octavio Ianni, “é pela memória que se puxam os fios da história... O que parecia esquecido e perdido logo se revela presente, vivo, indispensável...”

Com o intuito de relembrar a história, fui buscar nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano uma fonte de inspiração. O livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso” é uma leitura obrigatória para entender as contradições de nosso tempo. Por isso, reproduzo um trecho do livro, onde o escritor fala sobre a amnésia obrigatória imposta pelas ditaduras militares que tomaram de assalto nossos países. Sabe aqueles textos que tu gostaria de ter escrito? Pois é, com Eduardo Galeano me sinto sempre assim.


A amnésia obrigatória

Por Eduardo Galeano

A desigualdade perante a lei é o que faz e continua fazendo a história real, mas a história oficial não é escrita pela memória e sim pelo esquecimento. Bem o sabemos na América Latina, onde os exterminadores de índios e os traficantes de escravos têm estátuas nas praças das cidades e onde as ruas e as avenidas costumam levar nomes dos ladrões de terras e dos cofres públicos.

Como os edifícios do México que desmoronaram no terremoto de 1985, as democracias latino-americanas tiveram seus alicerces roubados. Só a justiça poderia lhes dar uma sólida base de apoio, para que pudessem levantar-se e caminhar, mas ao invés de justiça temos uma amnésia obrigatória. Em regra, os governos civis se limitam a administrar a injustiça, fraudando as esperanças de mudança, em países onde a democracia política se despedaça continuamente contra os muros das estruturas econômicas e sociais inimigas da democracia.

Nos anos 60 e 70, os militares assaltaram o poder. Para acabar com a corrupção política, roubaram muito mais do que os políticos, graças às facilidades do poder absoluto e à produtividade de suas jornadas de trabalho, que todos os dias começavam bem cedinho, ao toque da alvorada. Anos de sangue, sordidez e medo: para acabar com a violência das guerrilhas locais e dos fantasmas vermelhos universais, as forças armadas torturaram, violaram e assassinaram a torto e a direito, numa caçada que castigou qualquer expressão da aspiração humana de justiça, por mais inofensiva que fosse.

A ditadura uruguaia torturou muito e matou pouco. A argentina, em contrapartida, praticou o extermínio. Mas apesar de suas diferenças, as muitas ditaduras latino-americanas desse período trabalharam unidas e se pareciam entre si, como cortadas pela mesma tesoura. Qual tesoura? Em meados de 1998, o vice-almirante Eladio Moll, que tinha sido chefe de inteligência do regime militar uruguaio, revelou que os assessores militares norte-americanos aconselhavam a eliminação dos subversivos, depois da obtenção das informações desejadas. O vice-almirante foi preso, por delito de franqueza.

Alguns meses antes, o capitão Alfredo Astiz, um dos açougueiros da ditadura argentina, foi exonerado por dizer a verdade. Declarou que a Marinha de Guerra lhe ensinara tudo o que fizera. E num acesso de pedantismo profissional, disse que ele próprio era “o homem tecnicamente melhor preparado no país para matar um político ou um jornalista”. Na época, Astiz e outros militares argentinos estavam sendo intimados e processados em vários países europeus pelo assassinato de cidadãos espanhóis, italianos, franceses e suecos, mas do crime contra milhares de argentinos eles tinham sido absolvidos pelas leis que apagaram tudo para recomeçar do zero.



Também as leis da impunidade parecem cortadas pela mesma tesoura. As democracias latino-americanas ressuscitaram condenadas ao pagamento das dívidas e ao esquecimento dos crimes. Foi como se os governos civis devessem ser gratos aos fardados pelo seu trabalho: o terror militar criara um clima favorável aos investimentos estrangeiros e limpara o caminho para que se concluísse impunemente a venda de países, a preço de banana, nos anos seguintes. Em plena democracia, ultimaram-se a renúncia da soberania nacional, a traição dos direitos do trabalho e o desmantelamento dos serviços públicos. Fez-se tudo, ou tudo se desfez, com relativa facilidade. A sociedade que, nos anos 80, recuperou os direitos civis, estava esvaziada de suas melhores energias, acostumada a sobreviver na mentira e no medo, e tão doente de desalento como necessitada do alento de vitalidade criadora que a democracia prometeu e não pode ou não soube dar.

Os governos eleitos pelo voto popular identificaram a justiça à vingança e a memória à desordem, e lançaram água benta na testa dos homens que tinham exercido o terrorismo de estado. Em nome da estabilidade democrática e da reconciliação nacional, promulgaram-se leis de impunidade que desterravam a justiça, enterravam o passado e elogiavam a amnésia. Algumas dessas leis foram mais longe do que seus tenebrosos precedentes mundiais. A lei argentina da obediência devida foi editada em 1987 – e derrogada uma década depois, quando já não era necessária. Em seu afã de absolvição, eximiu de responsabilidade os militares que cumpriam ordens. Como não há militar que não cumpra ordens, ordens do sargento ou do capitão ou do general ou de deus, a responsabilidade ia parar no reino dos céus.

(...) A justiça e a memória são luxos exóticos nos países latino-americanos. Os militares uruguaios que mataram os legisladores Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz caminham tranquilamente pelas ruas que têm os nomes de suas vítimas. O esquecimento, diz o poder, é o preço da paz, enquanto nos impõe uma paz fundada na aceitação da injustiça como normalidade cotidiana.

Acostumaram-nos ao desprezo pela vida e à proibição de lembrar. Os meios de comunicação e os centros de educação não costumam contribuir muito, digamos, à integração da realidade e sua memória. Cada fato está divorciado dos demais fatos, divorciado do seu próprio passado e divorciado do passado dos demais. A cultura de consumo, cultura de desvinculação, nos adestra à crença de que as coisas ocorrem sem motivo. Incapaz de reconhecer suas origens, o tempo presente projeta o futuro como sua própria repetição, o amanhã é outro nome do hoje: a organização desigual do mundo, que humilha a condição humana, pertence à ordem eterna, e a injustiça é uma fatalidade que estamos obrigados a aceitar ou aceitar.

A história se repete? Ou só se repete como penitência para quem é incapaz de escutá-la? Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a rasguem, por mais que a mintam, a história humana se nega a calar a boca. O tempo que foi continua pulsando, vivo, dentro do tempo que é, ainda que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de lembrar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje mais do que nunca é necessário reivindica-lo e pô-lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita; não para que os vivos sejamos ventríloquos dos mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não condenadas ao eco perpétuo da estupidez e da desgraça, Quando está realmente viva, a memória não contempla a história, mas convida a fazê-la. Mais do que museus, onde a pobre se entendia, a memória está no ar que respiramos; e ela, no ar, nos respira.

(...) A impunidade é filha da má memória. Sabiam disso todas as ditaduras de nossas terras. Na América Latina foram queimadas cordilheiras de livros, livros culpados por contar a realidade proibida e livros culpados simplesmente por ser livros, e também montanhas de documentos. Militares, presidentes, padres: é longa a história das fogueiras, desde que em 1562, em Maní de Yucatan, frei Diego de Landa lançou às chamas os livros maias, pretendendo incendiar a memória indígena.

Para citar apenas algumas labaredas, basta lembrar que em 1870, quando os exércitos da Argentina, Brasil e Uruguai arrasaram o Paraguai, os arquivos históricos do vencido foram reduzidos a cinzas. Vinte anos depois, o Brasil queimou toda a papelada que testemunhava três séculos e meio de escravidão negra. Em 1983, os militares argentinos lançaram ao fogo os documentos da guerra suja contra seus compatriotas; e em 1995, os militares guatemaltecos fizeram o mesmo.

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