quarta-feira, 2 de abril de 2014

Como é possível que até hoje nenhum torturador tenha conhecido a Justiça no Brasil?

Ato-homenagem foi um encontro entre gerações em defesa da memória, da verdade e da justiça. | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Salão de Atos da UFRGS ficou completamente lotado para ouvir os depoimentos dos militantes que combateram à ditadura e sobreviveram a ela.

Por Marco Weissheimer – Sul 21

Como é possível que, até hoje, no Brasil, nenhum torturador tenha sido preso? Nenhum! Como é possível que nenhum responsável por essas atrocidades tenha conhecido a justiça? As perguntas feitas por Flavio Koutzii expressaram a mistura de indignação e perplexidade que outros participantes do ato- homenagem “50 anos do Golpe de 1964, 50 anos de impunidade” manifestaram na noite de segunda-feira (31), no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que ficou superlotado para ouvir o depoimento de seis pessoas reconhecidas por suas trajetórias de luta contra a ditadura instalada no país após o golpe de 64 e pelas denúncias que fazem até hoje dos crimes cometidos neste período. A presença do público, majoritariamente jovem, surpreendeu os próprios organizadores do ato e, principalmente, os homenageados.

“A presença de vocês aqui hoje é um alento que não vivi em nenhum momento no pós-ditadura”, disse emocionada Suzana Lisboa, manifestando um sentimento que atravessava o ar do Salão de Atos da UFRGS. Foi um evento com uma altíssima carga emocional. E o principal combustível para a emoção foi a realidade. Algo de novo estava acontecendo ali, disseram vários dos participantes do encontro. A começar por Clara Charf, viúva de Carlos Marighella, que se mostrou absolutamente surpresa e encantada pelo que estava presenciando. “Estou admirada e encantada. Há muito tempo que eu não via uma manifestação assim. Se o Marighella estivesse vivo, isso aqui seria um grande presente para ele”, disse Clara, 88 anos, militante desde 1945, sempre com o movimento de mulheres como fez questão de registrar.

O ato-homenagem na UFRGS foi um encontro de gerações que, segundo testemunharam os mais antigos, ainda não havia acontecido na escala em que aconteceu. Um dos principais responsáveis por esse encontro inter-geracional foi o professor Enrique Serra Padrós (História/UFRGS), que trabalha com esse tema há anos e criou o Coletivo pela Educação, Memória e Justiça, que reúne professores, alunos e ativistas da área de direitos humanos. Padrós contou que, quando o Coletivo estava pensando o ato-homenagem, decidiu eleger como público-alvo preferencial estudantes das escolas de Porto Alegre. A partir daí se constituiu uma rede de amigos, companheiros, estudantes, ex-alunos e professores cujo trabalho se materializou segunda-feira à noite nas cerca de duas mil pessoas que lotaram o salão da universidade.

“Um ato de redenção para a UFRGS”

O encontro teve um significado especial para a universidade também, como afirmou a socióloga Lorena Holzmann, ex-aluna e professora da UFRGS. Ela lembrou o triste período das cassações e expurgos de professores que se seguiu ao golpe de 64. “Com este ato de hoje, a Universidade se redime, de certo modo, do que houve na ditadura. É um ato de redenção”, disse Lorena, também emocionada. Redenção, memória, verdade, justiça, encontro de gerações, vida: essas foram algumas das palavras centrais no ato-homenagem. Uma homenagem que se dirigiu aos participantes convidados e também aos que caíram na ditadura, sendo que cerca de 155 deles seguem desaparecidos até hoje. Um vídeo exibido no início do evento mostrou os seus rostos, em sua maioria, jovens idealistas como aqueles que estavam na plateia encontrando uma história que ainda não conheciam. E juntou uma foto de Amarildo na galeria dos que tombaram vítimas da violência policial.

As novas gerações ouviram relatos crus e duros sobre o que foi a tortura na ditadura. Relatos como o de Goreti Lousada, filha de Antônio Losada, que sofreu um atropelamento e está na UTI do Hospital de Pronto Socorro. Goreti contou um pouco da história de luta de seu pai, que foi preso em 1973 no governo Médici e ficou quatro meses no DOPS em Porto Alegre sofrendo tortura. Ela leu um trecho de um texto escrito por Losada que descreve a tortura sofrida por uma mulher no DOPS. Essa mulher era a mãe de Goreti que, com a voz engasgada pela emoção, prosseguiu a leitura até o fim sendo muito aplaudida. Ela lembrou, com orgulho, que seu pai, após sair da prisão não seguiu o conselho dado pelos policiais de deixar aquilo tudo para trás. “Ele denunciou seus torturadores, nome por nome”.

João Carlos Bona Garcia homenageou, na pessoa de Enrique Padrós, todos os professores de História que estão trabalhando para resgatar a memória do período da ditadura. Também homenageou a todos os que tombaram pelo caminho, tanto no Brasil como no Exterior, lembrando os nomes de Frei Tito e Maria Auxiliadora. Bona Garcia também falou da tortura da qual foi vítima e deu o nome de seu torturador. “Quem me torturou foi Átila Rohrsetzer, que estava acompanhado de um médico, e nos torturava ouvindo música clássica e falando da mulher e dos filhos. Eles sentiam prazer em fazer isso”, contou. Bona disse ainda que a visão da ditadura segue presente na sociedade. “Em outros países, órgãos de repressão estão reconhecendo crimes que cometeram. Aqui no Brasil ainda não houve nada disso”.

“Não esquecer e entender o que aconteceu”

Flavio Koutzii lutou contra ditaduras no Brasil e na Argentina, onde foi preso, e definiu assim a importância do ato do qual estava participando: “O centro de hoje é não esquecer o que aconteceu e entender o que aconteceu, em toda a sua complexidade”. Ele falou de dois resquícios do período ditatorial que seguem vivos hoje: “No Colégio Militar de Porto Alegre, os livros com os quais os alunos trabalham ainda trazem a versão das forças armadas sobre aquele período. Espero que um dia a Presidência da República ponha um fim nisso”. O segundo resquício é o fato de os torturadores não terem sido julgados até hoje. “Como é possível isso? Não se trata de nenhuma fobia anti-militar, mas sim de justiça e memória”. Sobre esse ponto, chamou a atenção ainda para o seguinte fato: “Nunca li uma notícia dizendo que alguém que foi torturado foi atrás de seu algoz depois de sair da prisão e o matou com um tiro na cabeça. Nenhum de nós fez isso, pois seria mais uma vitória deles”.

Na mesma direção, a uruguaia Lilián Celiberti denunciou a impunidade dos crimes cometidos na ditadura brasileira e defendeu a importância da memória para combatê-la. “A impunidade é a perseguição e a destruição da memória. Com todos vocês aqui hoje a memória se torna algo vivo, algo presente. Para derrotar a impunidade, cada um de nós aqui precisa sair daqui e compartilhar essa luta, compartilhar o que está ouvindo e vendo aqui. Neste diálogo inter-geracional podemos construir uma democracia real baseada na memória, na verdade e na justiça”.

Nei Lisboa manifestou algum otimismo com o que estava vendo nas atividades sobre os 50 anos do golpe. “É a primeira vez que vejo isso que está acontecendo agora. Nos atos relativos aos 30 ou 40 anos do golpe nunca conseguimos reunir tanta gente como está aparecendo aqui hoje. E se começou a falar mais claramente sobre o papel da sociedade civil, de empresários, da mídia e dos Estados Unidos no golpe”.

Ditadura gestou uma sociedade de medo

Nilce Azevedo Cardoso, que também foi torturada durante a ditadura, manifestou-se extasiada com o que estava vendo no Salão de Atos da UFRGS. Ela acentuou o caráter midiático-civil e militar do golpe e disse que “toda a sociedade brasileira foi torturada a cada tortura que um de nós sofremos”. Nilce traçou uma linha de conduta entre a impunidade da tortura e a sua prática hoje no Brasil: “Nós ficamos sabendo de torturas e mortes praticamente todos os dias. Nossos jovens estão sendo assassinados e uma das razões disso estar acontecendo é que, durante 21 anos, foi gestada uma sociedade do medo. Foram 21 anos de medo e não-pensar. Temos que desconstruir tudo isso. Temos que denunciar os Pedro Seelig e os Ustra da vida e perguntar onde estão nossos companheiros que foram assassinados, onde estão seus corpos?”.

Irmã do militante do PCdoB, João Carlos Haas, um dos desaparecidos da guerrilha do Araguaia, Sônia Haas lembrou que ele foi aluno da UFGRGS e presidente do Centro Acadêmico Sarmento Leite, razão pela qual foi preso inclusive. Ela também expressou otimismo pelo que estava vendo em Porto Alegre: “A gente enxerga em vocês uma esperança. Nós seguimos lutando, mas estamos ficando cansadas. Precisamos renovar essa energia pois ainda há muita coisa para contar. A boa notícia é que as pessoas estão tendo mais coragem e o coletivo está ficando mais forte”, disse Sônia, lembrando uma frase dita pelo irmão morto na guerrilha do Araguaia: “nenhum sacrifício será em vão”.

“O Estado brasileiro até hoje não nos entregou nenhum corpo”

Encerrando os depoimentos, Suzana Lisboa observou que até hoje essa história não faz parte do currículo escolar. “Devíamos sair daqui e exigir dos nossos governos municipal, estadual e federal para que esse tema passe a fazer parte do currículo das escolas”, propôs. Viúva de Luiz Eurico Tejera Lisboa, irmão de Nei Lisboa, Suzana criticou o espaço dado ao coronel Ustra em uma entrevista de três páginas publicada no jornal Zero Hora. E lembrou que o único militar morto dentro de um quartel no Rio Grande do Sul foi o coronel aviador Alfeu Monteiro, assassinado pelas costas com uma rajada de metralhadora por ter se recusado a atacar o Palácio Piratini. 

Suzana Lisboa elogiou o gesto da presidenta Dilma Rousseff que impediu que os quarteis comemorassem o golpe este ano, mas fez cobranças ao Estado brasileiro. Ela defendeu que o Brasil cumpra a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos e lembrou: “dos 160 desaparecidos de que temos conhecimento, nós, os familiares, conseguimos resgatar cinco corpos. O Estado brasileiro até hoje não nos entregou nenhum corpo. Além disso, até hoje, os familiares dos desaparecidos não foram recebidos pelo governo (nenhum dos últimos governos: Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma)”.


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